quarta-feira, setembro 17, 2003

Realmente Amarelo Manga é um bom filme. Realmente também é um filme superestimado (pode se pôr a culpa disso numa tradição pernambucana). Mas tudo em seu tempo. Logo de cara o filme mostra o quão Texas Hotel, curta que se passa no mesmo universo, era desnecessário (e vale lembrar que também foi superestimado na época). Esse comentário e desnecessário, mas faz parte de um projeto ideológico que procura debater qual a utilidade de um curta-metragem (definitivamente, não deveria ser um "trailer").

Amarelo Manga busca retratar a vida de personagens marginalizados (acho estranho o emprego desse termo sem citar a margem de quê, mas é basicamente isso) que vivem tanto no centro do Recife como no subúrbio. O filme faz bem isso, menos por utilizar a posição social como uma bandeira do que em criar personagens interessantes. O dono do Texas Hotel - uma espelunca caindo aos pedaços no centro esquecido de uma cidade que se orgulha de suas "revitalizações" urbanísticas -, seu cozinheiro homossexual (viado mesmo), uma prostituta velha e um traficante necrófilo, a dona de um bar, um peão de matadouro e sua esposa crente, uma comerciante de algum mercado público, um padre de uma igreja abandonada (imagem muito bem sacada) são as figuras que povoam o universo da trama que se desenrola em um dia. Os ambientes foram escolhidos para ressaltar uma cidade que talvez nem todos reconheçam, mas que deve fazer parte da vivência de pessoas como estas. Também merece elogios a utilização do elemento comida. Desde o abate do boi até a feitura da carne; seja uma dona de casa preparando uma refeição para o marido, seja cozinhar para um batalhão, sejam os pê-efes baratos, as porcarias do meio da rua ou as frutas virando bagaço, o filme parece ser conduzido pelo verbo comer. E beber também. E foder, nesse caso usa-se o sentido sexual e o sentido da violência, que nunca estão necessariamente juntos ou separados.

Tudo acontece em um dia, e a vida continua no outro. É basicamente isso que o filme mostra. E é essa inércia que move os personagens, uma incapacidade de fazer as coisas funcionarem (e parecem que elas funcionam sozinhas). Mesmo quando se cria uma intriga, quando se tenta agarrar alguém a força, quando se expulsa o cliente do bar ou quando se decide pintar o cabelo e manda todo mundo tomar no cu, existe algo que escapole sempre do controle: a macro-política, a situação econômica, a vida...

O filme tem seus excessos. Cenas que nada acrescentam e momentos em que se pretende chocar ingenuamente. E durante o filme parece que um elemento foi estrategicamente excluído daquele universo marginal. Faz-se parecer que a cidade, a sociedade, é feita só por aqueles marginais. Aquela classe média que não vive tão distante dos locais que o filme centra a ação, a mesma classe média que é movida por um fascínio pelo outro e uma preocupação social aparentemente esta fora da ação, marginalizada em relação ao filme. Nada daquele espírito esquerdista que busca o olhar do excluído para entender a sociedade, nada dos estudantes universitários que vão fazer etnografia em qualquer birosca, os adolescentes que buscam o morro para se gabar de conhecer a periferia. Mas o filme é ele próprio esse elemento. É esse o significado que escapa nas cenas em que mostram pessoas "do povo" paradas diante das câmeras, com a intenção de mostrar a imobilidade e a inércia citada anteriormente (como se fosse a resposta no verso de uma charada), mas que deixa clara uma visão externa (de classe média, dos artistas, da intelectualidade, ou seja lá o que for).

O diretor do filme falou da sua intenção de passar o filme no Cinema do Parque (a um real), no intuito que o povo pudesse ir ver. Na saída da sessão em que pude apreciar o filme (cheguei atrasado por isso não notei antes da sessão), não se via, entre a platéia, as pessoas que o filme retrata, pelo menos não de uma forma expressiva.

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